Veja se essa história soa familiar. Você conhece um cara ou uma mulher, que adora apontar defeitos masculinos/femininos, não perde a chance de dizer o quanto é diferente da maioria e se coloca enquanto amadurecido/a, alguém com responsabilidade afetiva.
Essa pessoa logo se encanta por você, faz várias projeções de futuro. Você corresponde com parcimônia, com base na sensatez. Procura checar se aquele terreno é seguro. Ao menor sinal de desconfiança ou hesitação da sua parte, a pessoa garante: aquele sentimento é verdadeiro, ele/a não vai deixar você na mão. O tempo vai passando, a empolgação dele/a se mantém e você se envolve cada vez mais. Afinal, ele/a está super na sua. Tem boa cabeça. É sensível. Não passa pano pros parças ou pras manas.
Até que, de repente, quando você já sente segurança naquela situação, o comportamento dele/a muda. Passa a ficar distante, não responde com frequência, fala pouco. Principalmente quando você não segue o ritmo e os planos dele/a.
Você estranha, pergunta se aconteceu alguma coisa. E ele/a sempre diz que está tudo bem, mesmo que o comportamento tenha deixado de ser atencioso, presente, entusiasmado. Com o tempo, a apreensão toma conta. Junto com a tristeza e a angústia. Você fez algo de errado? Ele/a ainda gosta de você (diz que sim, mas age tão diferente)? Tem alguma coisa que você possa fazer para retomar aqueles dias tranquilos? Será que o exagero vem da sua parte?
Quanto mais explicações você busca, quanto mais tenta reestabelecer a conexão anterior, mais a pessoa se retrai e maior a confusão na sua cabeça.
Caso já tenha passado por isso, saiba que é algo comum. Surge alguém que parece ser ótima companhia. Mas só parece mesmo. Logo brotam os sinais de insegurança, imaturidade e tudo aquilo que ele/a tanto condenava nos outros. Só que você já gosta dele/a, o/a conheceu quando mostrava o lado confiável, doce, carinhoso. É difícil processar que aquilo não existe mais, ou que talvez nem tenha existido de verdade.
Chamo esse fenômeno de efeito pisca-pisca. É a pessoa que enche você de brilhos coloridos e encantadores, que se apagam quando você mais precisa que eles brilhem. Mas assim que você está prestes a atingir seu limite, tcharan, olha a luz brilhante de novo, tão quente, tão bonita. E vocês ficam nesse pisca-pisca que nem supre as suas necessidades afetivas, nem afasta você.
De onde vem esse comportamento?
O termo love bombing (bombardeio de amor, em tradução livre) vem sendo utilizado por psicólogos para descrever uma dinâmica que pode se encaixar no transtorno de personalidade narcisista, embora não se restrinja a ela. Basicamente, alguém que pratica o love bombing (geralmente, um homem) demonstra interesse, afeto e admiração de forma excessiva a uma pessoa para, depois de conseguir que ela se envolva, mudar de comportamento e manipular a relação. O exagero afetivo não é voltado realmente às necessidades ou à figura do/a outro/a, mas ao desejo de valorização e controle de quem promove essas demonstrações.
Pesquisadores e profissionais engajados no combate à violência contra as mulheres e à masculinidade tóxica frequentemente identificam relatos desse tipo de comportamento entre as pacientes que se relacionam com homens ou entre os casos e textos que estudam. As narrativas seguem roteiro similar. Falam de homens muito afetuosos e persistentes no início, apenas para se transformarem em indecisos e frios depois. Há várias nomenclaturas disponíveis: controle do afeto feminino, defraudação amorosa, irresponsabilidade afetiva, incoerência masculina como estratégica de controle. Segundo boa parte dessas fontes, nossa cultura afetiva, baseada tanto em machismo quanto em misoginia, tem papel importante nessa dinâmica, já que se apoia na premissa de que homens devem ser agradados e mulheres precisam agradá-los.
Boa parte das vezes, esses homens sabem que mulheres são propensas a se comprometerem com relacionamentos que já funcionaram bem, por serem criadas para (e constantemente estimuladas a) relevarem as atitudes masculinas, se adaptarem e se adequarem a elas, buscando oferecer amparo constante ao homem amado, em uma relação quase maternal. Então garantir que o relacionamento flua bem no início, desfazendo as objeções da mulher, prepara o terreno para a sabotagem posterior.
Eles também sabem que a mudança brusca de comportamento gera confusão, insegurança, medo. É isso que eles querem. Ao desestabilizar a mulher (ou qualquer pessoa naquela situação), é mais fácil conseguir tanto mantê-la por perto, em busca de respostas e de afeto, quanto controlar o relacionamento. Principalmente quando a mulher associa o fato de seguir o que o parceiro deseja para ter algo parecido com o que ela procurava.
Por exemplo: a mulher quer receber alguma demonstração de carinho, mas não consegue isso por conversas ou gestos meigos. As ocasiões em que o sujeito se comporta de modo mais carinhoso é quando ela envia nudes ou engaja em interações sexuais. Assim, essas trocas passam a significar o meio pelo qual a mulher se sente momentaneamente contemplada no relacionamento. Por mais que ela nem quisesse ter esse tipo de atitude com tanta frequência, por mais que se sinta desconfortável. Entra na dinâmica para conseguir a reafirmação da qual necessita.
O efeito pisca-pisca nada mais é do que um dos sintomas do que chamo de manipulação afetiva. Problema que não é exclusividade de casais formados por homens e mulheres, mas, pelo que foi pesquisado, acaba sendo mais recorrente entre eles. Nesses casos, envolve um indivíduo beneficiado por estruturas machistas e misóginas (o homem) e um indivíduo subjugado por essas mesmas estruturas (a mulher), o que amplifica os danos. Afinal, não se trata apenas de uma questão íntima, sobre a conexão entre duas pessoas. Trata-se de uma questão estrutural. Dinâmica que pode se transformar em um relacionamento abusivo, que infelizmente encontra respaldo na nossa própria cultura afetiva.
Certo, já entendi do que se trata. Mas como lidar com isso?
Por mais que não seja tarefa fácil, o ideal é ter sinceridade com os próprios sentimentos. Se existem problemas naquela dinâmica, vale comunicar à pessoa. Pode ser que ela não faça por mal, para manipular — conforme visto acima, alguns e algumas fazem, e não são poucos. Pode ser que ele/a seja confuso/a das ideias. Inexperiente. Esteja em uma fase ruim. Independentemente do motivo, o fato é que esse comportamento faz mal a você. E ninguém deveria ficar em uma relação na qual sente insegurança e frieza o tempo todo.
É importante refletirmos sobre dinâmicas afetivas, não só porque espelham outras dinâmicas socioculturais, mas também para entender melhor o que configura relacionamentos sustentáveis e problemáticos. Até para nos questionarmos se passamos por situações de manipulação afetiva, abuso ou se fizemos isso com alguém.
Abre o jogo. Chora o que tiver que chorar se o desfecho for triste, curte o que tiver que curtir se o desfecho for feliz.
De qualquer forma, vai ficar tudo bem.
Promessa.
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Confira aqui o post sobre o efeito pisca-pisca em formato compacto.
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