Na semana do dia 8 de março, integrando o Mês Internacional das Mulheres, fiz duas enquetes nas minhas mídias sociais (que vocês podem conferir nos links aqui em cima).
O que você já deixou de fazer por ser mulher? O que ser mulher inspira você a fazer? Foi uma semana em que usei a câmera do celular para dar voz a uma série de apontamentos que, há anos, venho desenvolvendo sobre a vivência feminina. Reparos, experiências e reflexões que achei que era hora de dividir. A quantidade de respostas recebidas, de mulheres tão diferentes entre si, revela o quanto essas temáticas nos tocam e nos mobilizam. Agradeço a cada uma que compartilhou suas experiências ao longo desse processo por mensagens privadas e/ou comentários nas postagens. Foi muito bonito tecermos, juntas, essa rede de relatos.
Entre elementos comuns nas lutas que travamos todos os dias enquanto mulheres, encontrei variações de pontos de vista, outras paisagens, novos questionamentos. Diante dessa riqueza de narrativas e das possibilidades que elas constroem, divido aqui o resultado das enquetes em versão mais extensa.
Espero, por meio dessa dupla de artigos, ampliar o debate multiplataforma que o experimento proporcionou, além de permitir que tanto as mulheres que participaram das enquetes quanto o público que as acompanhou (ou venha a descobri-las) possam ter acesso a uma análise mais elaborada desse material.
Breves esclarecimentos: algumas respostas tiveram interferência minha ao interagir com elas. Aqui, aparecem em texto corrido, sem inserir o que comentei. O compilado a seguir é representativo das respostas recebidas, mas, por questões de objetividade, não traz cada uma das respostas compartilhadas.
Compilado de respostas à pergunta "O que você já deixou de fazer por ser mulher?”
“Usar roupas um pouco mais curtas ou decotadas, para não me interpretarem como "oferecida", o que abre espaço para assédio, violência, julgamentos”.
“Voltar pra casa tarde sozinha”.
“De ser simpática, pra não acharem que tô dando mole. Ando na rua com cara de c*, melhor me acharem mal-humorada do que um alvo em potencial”.
“Eu já deixei de ir sozinha a um bar ou a um show por medo de ser assediada ou abusada e não ter para quem pedir ajuda. Eu já deixei de aceitar um trabalho no horário noturno por medo de ter que pegar ônibus naquele horário. Eu já deixei de usar uma determinada roupa por achar que meu corpo estava fora do padrão. Eu já deixei de dormir em uma viagem de ônibus porque tinha um homem sentado ao meu lado (pois a última vez que eu fiz isso, acordei com uma mão dentro da minha blusa)...”.
“Entrar em debates com muitos homens participando”.
“Eu abri mão de frequentar alguns lugares (casa de festas, shows, bares) com medo de sofrer algum tipo de assédio ou agressão por estar sozinha. Inclusive viajando em outro país, quando meu propósito era ir em alguns desses lugares”.
“Já deixei de fazer uma pós porque o lugar era super perigoso e tinha medo de sair sozinha”.
“Tenho receio de parecer menos profissional pela minha aparência”.
“Eu deixei de aprender bateria também. Meus pais falavam que era um instrumento muito masculino e barulhento, me colocaram na aula de violão (que eu odiei) e piano (que foi mais ok, mas não aquela coisa). Só hoje, depois de burra velha, decidi aprender bateria e vencer esse preconceito nada a ver”.
“Se eu for listar... Além de críticas quanto às roupas. Assédio no trabalho e na vida. Não basta você ser boa no que faz, tem que provar que é, e por aí vai”.
“Já deixei diversas vezes de ocupar o assento mais próximo da janela do ônibus para poder mudar de banco com facilidade caso um homem sente ao meu lado e me assedie”.
“Nunca aprendi nenhuma arte marcial porque a família diz que é coisa de menino”.
“Nossa, tanta coisa! De usar uma roupa que eu queria pra não aumentar as chances de assédio (digo as chances porque já mexeram comigo na rua estando de calça jeans, tênis e blusa de super herói). Deixei de falar alguma coisa porque sabia que naquele momento ninguém me levaria a sério por ser mulher. De sair porque já estava tarde e não queria lidar com a rua de noite por medo. De dizer que não quero ser mãe por preguiça do "ain você não sabe o que diz. Uma hora o relógio biológico grita. Toda mulher tem instinto materno, você vai ver. Todas nós precisamos descobrir esse amor incondicional que é ser mãe. Você não sabe o que é amar de verdade até ver aquela carinha!" Vixi... Muita coisa!”.
“Ser mulher nunca me impediu de fazer nada. Feminismo não é um movimento, é uma doença de pessoas mimizentas, pronto, falei”.
Respondi: Que bom que essa não é sua experiência. Lendo os comentários, conseguimos ver que ela é uma exceção. Espero que, um dia, possa ser a regra. Doença é aquilo que faz mal, machuca, mata. Até onde sabemos, o que faz isso é o machismo. O feminismo combate essa doença. Por isso, prefiro chamá-lo de cura. “Sair de casa à noite por medo de ser estuprada”.
“Confiar na minha qualificação profissional diante de homens da mesma área”.
“Sou atriz e preciso descobrir quando o teste de elenco ou o ensaio de uma determinada cena é sério ou só desculpa pra me verem em certas situações”.
“Andar na rua à noite”.
“Não aproveito a pracinha perto de casa porque ao redor tem barzinhos com muitos homens, vários deles já meio altos, tenho medo”.
“Sair sozinha à noite”.
“Fazer xixi na rua por falta de banheiro feminino, cabines, fechaduras, segurança, por ser um comportamento “muito masculino”, por não me darem tempo pra isso”.
“Deixei de pegar ônibus de madrugada só porque estava sozinha”.
“Tudo isso e mais! Muito também por ser mãe! As tarefas, cuidados e educação são colocados a nós, como se fôssemos as únicas responsáveis!”.
“Já deixei de fazer muita coisa por estar menstruada ou com cólica. Pior que essa não é considerada uma explicação válida, né, vira motivo de deboche. Todo mês eu preciso pensar como meu ciclo menstrual pode interferir no que tenho programado, tipo, no trabalho, na rotina mesmo, porque tenho cólicas muito fortes, faço até tratamento. E não tem muito jeito, quando não é menstruação é gravidez e quando não é nenhuma das duas é menopausa”.
“Correr no calçadão da praia, que eu amo, por só ter horário de noite e ser perigoso, ainda mais de roupa de ginástica”.
“Pra dizer a verdade, nunca parei pra pensar nisso...”.
“Hoje com meus 30 anos de empresa, se fosse engenheira e homem, minha voz seria muito mais ouvida. Quem perde é a empresa”.
“Usar roupa curta em alguns momentos”.
“Uma vez usei um banheiro público e descobri um homem me espiando. Desde então sempre fiscalizo banheiros e provadores antes de usar. Seguro o máximo que puder”.
“Que eu me lembre, nada”.
“Na teoria, você pode vestir ou dizer o que quiser. Na prática, não pode”.
“Fui ser entrevistada para um projeto e, na hora da tal entrevista, descobri que era um encontro com o recrutador”.
“De viver! Hoje, não mais! Quando nos livramos das grades — o que é muuuuuiiiito difícil — voltamos a VIVER, no sentido pleno da palavra”.
Respostas recorrentes
1º Frequentar certos lugares (eventos, praças, casas de festa, bares, locais mais distantes ou em regiões desertas).
2º Sair sozinha, principalmente à noite.
3º Usar transporte público ou pedir um carro à noite.
4º Se expressar (com roupas, palavras, atitudes) da forma que gostaria.
Discussão dos resultados
Com base nas respostas recebidas, podemos perceber o quanto o espaço público é restritivo e excludente em relação às mulheres. Tanto por comportamentos que as pessoas têm nesse espaço (violência, assédio, desprezo, indiferença com situações que mulheres enfrentam) quanto pelas próprias configurações dos ambientes compartilhados ou coletivos (falta de segurança pública, falta de banheiros femininos adequados às necessidades de quem os utiliza, falta de apoio diante de agressões, falta de câmeras de segurança para prevenir abusos ou rastrear abusadores, pouca quantidade de vagões exclusivos para passageiras).
Também vemos que algumas mulheres — singela minoria, mas digna de nota — dão pouca importância às denúncias compartilhadas, alegando não terem se sentido impedidas de fazer alguma coisa por questões de gênero. No entanto, no conjunto de relatos fornecidos, essas experiências representam exceções à regra. Uma respondente chegou a chamar as que apontavam esses problemas de “mimizentas”, ou seja, frescas, frágeis.
Aqui precisamos esclarecer: a mulher que deixa de fazer um curso por se preocupar com a própria segurança em um local distante e hostil não é medrosa nem exagerada. Se tivéssemos que chamá-la de alguma coisa, seria de realista ou, no mínimo, ciente da realidade que a cerca. Os danos causados pela exposição constante à misoginia (o que inclui assédios, violências) e/ou o impacto de algum abuso sobre a vida de uma pessoa são duradouros. Muitas nunca mais são as mesmas. Tratar esses traumas leva tempo, custa caro, há recaídas, marcas que permanecem. E a vivência feminina no espaço público faz com que, diariamente, mulheres estejam propensas a desenvolverem esse tipo de abalo.
Andar pelas ruas se torna traumático quando você teme pela sua segurança e integridade física a cada esquina. Algo rotineiro para boa parte das mulheres, segundo as respostas recebidas na enquete. Isso considerando que o experimento englobou apenas o recorte de gênero. Ao adicionar fatores como classe social e raça/etnia, há mulheres em situação ainda maior de vulnerabilidade.
Em vez de julgarmos aquelas que se privam de determinadas experiências por receio de serem feridas (física, moral ou psicologicamente), por que não pensarmos, enquanto sociedade, maneiras de tornar o espaço público mais inclusivo e menos violento para as mulheres? Até quando colocaremos a solução de um problema coletivo na conduta individual, como se ela, isolada, pudesse resolvê-lo?
Reconhecer as precariedades e agressões às quais se está exposta não é frescura nem sinal de fragilidade. É consciência. Primeiro passo para articular mudanças.
Abordaremos essa temática na segunda parte dos resultados, que você pode acessar aqui.
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Confira aqui o post com os resultados em formato compacto.
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