Vivemos em uma cultura — compartilhada por diversos países, sobretudo no Ocidente — que prioriza a busca pela formação de famílias nucleares, tomadas como as principais responsáveis pelo cuidado (físico, afetivo, moral, psíquico) às crianças delas provenientes. O casamento instituído na liberdade se torna o lugar privilegiado da felicidade, alegria e ternura, sendo a procriação seu ponto culminante. Os casais, em tese, não mais se unem por conveniência ou arranjos familiares, mas pelo desejo vindo do amor-paixão.
Nesse arranjo, que data do século XVIII, tanto a educação sentimental feminina quanto a concepção de seu papel social se voltam fortemente para os valores familiares. No âmbito doméstico, a família passa a ser encarada como cerne da existência das mulheres. Por meio dela seria possível adquirir aprovação e capital social, ainda que fosse necessário aturar as potenciais agruras desse mesmo ambiente.
Apesar de ter sofrido modificações — em boa parte devido às lutas femininas (e feministas) —, a ideia de que mulheres precisam conseguir (e manter) um par romântico para terem (maior) valor permanece. Enquanto, para homens, essa cultura afetiva implica procurar alguém adequado para constituir família ou, ao menos, estabelecer um relacionamento amoroso, para mulheres tal prática também diz respeito ao quanto valem como indivíduos.
Nossa cultura afetiva (dominante) tem como modelo o par formado por um homem e uma mulher. Sendo que vivemos em um contexto que coloca homens e mulheres em posições bem diferentes. Muita vezes, os efeitos dessa desigualdade afetam a maneira como mulheres se relacionam com o grupo que, desde cedo, são ensinadas a satisfazer, mesmo às custas do próprio bem-estar. Por mais que isso também afete mulheres em relacionamentos que fujam do modelo posto como padrão, tal dinâmica se intensifica quando o relacionamento é com um ou mais de um homem.
Essa mesma cultura dita que precisam buscar a aprovação masculina, mesmo que, para isso, se coloquem em segundo plano. Na rua, no trabalho, dentro de casa. Nós mulheres, em geral, nos acostumamos a ser maltratadas. É algo tão comum que leva tempo até percebermos que representa um problema. Mesmo em relacionamentos lésbicos, o hábito de privilegiar os desejos da parceira às custas das próprias necessidades costuma aparecer nas dinâmicas do casal.
Muitas de nós crescem em lares com violência doméstica, vendo a mãe, a avó e/ou a irmã passarem por situações de abuso, humilhação, controle. O mesmo vale para amigas e referências femininas próximas, inclusive, na ficção. Isso pode fazer com que enxerguem essas dinâmicas como normais, ou que tenham maior tolerância a elas.
Em diferentes produções midiáticas e no cotidiano social, ensinam que “não existe homem ruim, existe homem que não encontrou a mulher certa”. Mulheres são colocadas no papel de responsáveis pelo crescimento pessoal de quem com elas se relaciona, se acostumam à premissa de que terão de ensinar alguma coisa aos/às parceiros/as, principalmente se forem homens. Até um filme infantil bem famoso (e recente) tem uma música que diz à princesa: “ele precisa de uns reparos, mas ouça, por favor, você pode consertá-lo com um pouquinho de amor”.
Esse reflexo da maternidade compulsória cria a expectativa de que mulheres assumam a função de mãe de seus/suas parceiros/as, aquela que os/as orienta para se tornarem pessoas melhores. Um peso que homens não precisam carregar nos relacionamentos.
Tratar você com respeito, ter preocupação pelo seu bem-estar, fazer gentilezas, ouvir suas opiniões, admirar quem você é. Nada disso devia ser visto como diferencial. São requisitos. Esse é o básico de qualquer relação afetiva saudável. Seja entre namorados, cônjuges, parentes ou amigos.
É bonito compor um casal que se apoia nos bons e maus momentos. Mas, às vezes, queremos tanto fazer parte desse quadro que acabamos tirando de cena a pessoa que mais deveríamos deixar feliz: nós mesmas.⠀
Vamos parar de achar que o mínimo é o máximo que conseguimos. Vamos parar de tolerar o que nos machuca. Vamos entender que nossa própria companhia é, sim, melhor do que acompanhantes que não valorizam a(s) mulher(es) ao lado deles.
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