Termo bastante comum em debates sobre temáticas maternas nas mídias sociais, a expressão maternidade compulsória ressoa o modo como Judith Butler define a maternidade: instituição social compulsória. A filósofa a classifica dessa maneira devido às tentativas (até então, muito bem-sucedidas) de naturalizar e universalizar essa instituição enquanto própria do gênero feminino.
De modo mais simples, conforme discuto nesse episódio do podcast Papo no Auge!, maternidade compulsória consiste no conjunto de práticas socioculturais e políticas que levam as mulheres a se tornarem ou desejarem ser mães, sem que isso represente de fato uma escolha.
A forma como nos organizamos em sociedade, enquanto famílias nucleares, é baseada nesse modelo em que mulheres se tornam mães (ou pelo menos maternam) em algum momento da vida. Isso faz com que a maternidade seja socialmente valorizada, contando com aprovação social — diferente do que ocorre com a não maternidade. Ser mãe, muitas vezes, é suficiente para validar o que uma mulher constrói enquanto projeto de vida. Longe de significar que a maternidade seja uma vivência apaziguada, ter filhos, especialmente biológicos, é encarado por boa parte das pessoas como realização (social), um ato valoroso, capaz de se bastar em si mesmo.
A socialização feminina é fortemente marcada pelo maternalismo. O próprio debater a maternidade é, de muitas formas, imposto às mulheres. Desde pequenas, meninas recebem carrinhos de bebê e bonecas para "brincarem de ser mamãe". Brincadeiras estas que têm profunda relação com o espaço doméstico. Assim, mulheres crescem aprendendo a vincular o cuidado das crianças à casa e ao papel de mãe. Já os meninos não costumam ser socializados dessa forma. Por consequência, crescem sem se enxergarem enquanto as figuras responsáveis por zelar e oferecer carinho aos membros da família, sobretudo os mais fragilizados (em geral, idosos e infantes).
Filmes, livros, séries, quadros, músicas, peças, novelas, sermões religiosos e ditados populares ensinam que o amor materno é o mais poderoso que existe. Quem não o experimenta, não sabe o que é amar, dizem. Também disseminam a crença de que toda mulher seria mais feliz sendo mãe. Que a maternidade torna a vida mais completa. E que um casal só se ama de verdade quando tem filhos. A noção hegemônica de família, inclusive, implica o pai, a mãe e seus descendentes como pilares centrais.
A própria ideia de identidade feminina se baseia na maternidade. A "mulher ideal" é mãe, algo que se percebe mesmo em culturas originárias. E a "mulher mais feminina" é aquela com atributos considerados maternos. Essa expectativa — melhor dizendo, esse parâmetro — cria a noção de que mulheres precisam, sabem e gostam de maternar sobrinhos, filhos de amigas, parceiros amorosos, colegas de trabalho, parentes, animais de estimação.
Isso é ainda mais forte (e problemático) em países como o Brasil, em que os direitos reprodutivos das mulheres não são exercidos de forma plena. Pelo contrário, permanecem alvo de constantes ataques e reformulações que não se voltam para o bem-estar da população feminina.
A maternidade se torna compulsória quando é tão naturalizada que sequer a questionamos. Já fiz esse experimento algumas vezes nos últimos cinco anos: de forma espontânea, pergunto para mães por que tiveram filhos. Não sei, nunca tinha pensado nisso, todo mundo passa por essa experiência, né. Essas são as respostas mais comuns. O processo de reflexão acerca da escolha (ou da falta de escolha) de se tornar mãe aparece só depois da pergunta, geralmente com um intervalo de semanas. E, ainda assim, apenas para uma minoria de mães.
Elas não sentem que precisam justificar as razões pelas quais decidiram ter filhos porque tê-los integra o comportamento feminino normativo. Esse é o padrão. Assim como casar, namorar, manter laços afetivos com os parentes, entre outros aspectos que compõem a vida familiar. Âmbito este que, conforme apontado anteriormente, é essencial para a forma como nossa sociedade se estrutura, tendo as famílias nucleares enquanto base. Para o senso comum, quem precisa explicar seus motivos são aquelas que fogem à norma, por escolha (não mães voluntárias) ou porque não puderam ter filhos por algum motivo (não mães involuntárias).
Por um lado, a maternidade compulsória gera uma cultura que discrimina mulheres sem filhos. Elas seriam "menos merecedoras" de redes de apoio, "menos desejáveis", "menos comprometidas" na esfera afetiva, "menos desenvolvidas" enquanto mulheres. Também discrimina modelos maternos e de maternagem que se afastem dos hegemônicos, o que acarreta no fenômeno que chamo de maternidade negada para tantas mulheres que fogem às normas maternalistas. Por outro, cobra as mães a alcançarem expectativas idealizadas. No senso comum, se a maternidade apresenta tantas vantagens sociais para as mães, é esperado que não reclamem dela e que se aproximem o máximo possível de modelos maternos e de maternagem hegemônicos. Também se espera que supram toda e qualquer precariedade estrutural para criar os filhos a partir do seu papel de mãe.
Diante disso, precisamos entender de que maneiras a maternidade se construiu (e ainda se constrói) como instituição cultural e simbólica, sendo capazes de perceber as práticas, disputas e valores sobre as quais, enquanto conceito mais amplo, a maternidade se sustenta.
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Confira aqui o post sobre maternidade compulsória em formato compacto. Essa e outras temáticas são melhor exploradas no livro “Ser mãe é f*d@!”: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais.
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