Durante os séculos em que a caça às (assim chamadas) bruxas esteve em curso na Europa e em suas colônias, havia uma série de comportamentos que poderiam fazer uma mulher ser acusada de bruxaria. Entre eles, sua relação com os animais.
Até aquele momento, natureza, aldeias e vilarejos não eram entendidos como separados entre si. Pelo contrário. Existia também uma compreensão mágica do corpo, da terra e de suas criaturas. No caso dos animais, acreditava-se que podiam falar (por isso tantos animais falantes nos contos de fadas), ser responsabilizados por seus atos e até mesmo servir de testemunhas em julgamentos.
Porém, isso muda a partir da disseminação da teria descartiana de que animais seriam desprovidos de inteligência e de profundidade, aliada ao empenho das elites de forjar indivíduos compatíveis com o que viria a ser o modelo de produção capitalista.
Animais passam a ser colocados como a representação do instinto, do incontrolável, daquilo que se deve evitar. Assim, relações afetuosas entre animais e seres humanos se tornam malvistas. Mulheres que viviam com animais, os consideravam parte da família e/ou os tratavam de modo carinhoso entram para a lista de suspeitas de bruxaria. Muitas delas acabam punidas por esses comportamentos.
O antropocentrismo que se solidifica nesse período da história Ocidental mantém reflexos atuais. Laços com humanos ainda são mais respeitados e tidos como mais dignos do que laços com qualquer criatura ou entidade que não seja (considerada) humana. Não à toa, as imagens da "louca dos gatos" ou da "solteirona que trata cachorros como filhos" são insultos comuns. Remetem ao receio e à repulsa provocados por mulheres que não limitam seu comportamento a regras intolerantes. Bem como revelam o monopólio antropocêntrico da categoria "filho".
Portanto, é possível encarar as assim chamadas mães de pet (mesmo quando também são mães de gente) como resposta a uma tradição de desprezo por qualquer atitude questionadora do modelo restritivo que tantos insistem em manter dominante.
Discuto aqui a relação afetuosa com outros seres vivos além de humanos, especialmente os animais. Algo que fez parte de boa parte da história do Ocidente e, pelas razões acima expostas, passou a ser encarado como menos valoroso e até negativo. Hoje, existe a possibilidade de restabelecer esse vínculo. Diria, inclusive, que é necessário que as sociedades ocidentais e ocidentalizadas voltem a se enxergar como parte de um todo mais amplo. A mobilização de termos restritos a humanos (mãe, pai, filha, filho, tia, tio, irmão, irmã) para se referir às relações de responsabilidade e amor estabelecidas com outros seres é um fenômeno que permite, ao mesmo tempo, enxergar e flexibilizar o antropocentrismo tão presente no nosso cotidiano.
Já tinha pensado nisso?
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Para citar:
FIGUEIREDO SOUZA, Ana Luiza de. Mães de pet e caça às bruxas. Qual é a relação?. Nota de rodapé, 31 out. 2023. Disponível em: https://www.analuizadefigueiredosouza.com.br/post/maes-de-pet-e-caca-as-bruxas-qual-e-a-relacao
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Confira aqui o post sobre a possibilidade de interpretar uma relação entre caça às bruxas e as assim chamadas mães de pets.
Essa e outras temáticas são melhor exploradas:
b) e na tese de doutorado Mães de ninguém, em breve disponível para download.
Conheça aqui a história de mulheres que foram mortas por serem acusadas de bruxaria no Brasil.
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Fontes consultadas
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. 2. ed. São Paulo: Elefante, 2023.
FEDERICI, Silvia. Mulheres e a caça às bruxas. São Paulo: Boitempo editorial, 2019.
FIGUEIREDO SOUZA, Ana Luiza de. Tabus maternos e femininos. In: FIGUEIREDO SOUZA, Ana Luiza de. "Ser mãe é f*d@!": mulheres, (não) maternidade e mídias sociais. Porto Alegre: Zouk, 2022. p. 180-196.