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Foto do escritorAna Luiza de Figueiredo Souza

Cinco reflexões trazidas por "Mães Paralelas", segundo uma pesquisadora de maternidade

Atualizado: 2 de jul. de 2022

Quem também estava com saudade de um novo Almodóvar? 🙋🏽‍♀️


Mães Paralelas logo atraiu o público com a expectativa de tratar das nuances da vivência materna. Afinal, a maternidade está em alta nas produções midiáticas. O filme corresponde a essa expectativa, mas (felizmente) entrega muito mais do que isso.


De modo tão fluido quanto rebuscado, o longa enquadra algo que defendo inclusive no meu livro mais recente: mães não se resumem nem se restringem à maternidade. Têm atuação social, econômica e, como é o foco do filme, política.


Um lembrete poderoso de que “precisamos conhecer a história do nosso país” para construir uma realidade mais justa ao nosso redor.


Há tanto a destrinchar nesse filme que fazer um post sobre ele se mostrou desafiador, rs. Compartilho aqui com vocês minhas principais reflexões sobre o longa.


1) Apesar do título, esse não é um filme sobre maternidade.

E isso é ótimo.


O longa é protagonizado por uma mãe (Janis) que desenvolve uma relação próxima com outra mãe (Ana), mas isso não significa que a maternidade seja o tema central da trama.

Ela é um dos elementos que compõem a vida e os interesses das personagens, junto com a maternagem. Mas não é o único. Principalmente para Janis.


Ancestralidade, dilemas morais, apagamento histórico, relação dos jovens com as chagas do passado, desigualdades sociais, sexualidade, vivência materna. Tudo isso cabe no filme.


A maternidade aparece com sentido metafórico. Podemos tomar as mães evocadas no título enquanto dois lados da mesma pátria-mãe. Por um lado, a Espanha mais conservadora, que prefere ignorar o passado e as violências que persistem no presente para não se aborrecer ou sofrer. É representada por Teresa e Ana.


Por outro, a Espanha mais progressista, que busca superar esse passado e as violências hodiernas a partir de um olhar crítico, que resgata memórias e exige justiça. É representada por Janis, que se converte em uma espécie de mentora para a jovem Ana, atentando sobre as consequências de se alienar.


Gerações de mães e filhos (principalmente filhas) se encontram nesse panorama.


2) A maternagem repercute em outras mulheres.


Dificilmente a maternagem se restringe à mãe de alguém. Costuma envolver um conjunto de mulheres: parentes, cuidadoras remuneradas ou em barganha, amigas que oferecem suporte.


Mulheres estas que também podem ser impactadas pelas demandas da maternagem. A avó de Janis, por exemplo, mãe solo que perdeu o pai para a Guerra Civil Espanhola, precisou criá-la depois que a filha (outra mãe solo) morreu de overdose.


Enquanto Teresa, mãe de Ana, tem que escolher entre amparar a filha com a neta ou aproveitar sua grande chance na carreira de atriz, já que o ex-marido e pai de Ana a expulsa de casa depois que uma violência a engravida.


Dinâmicas que não deixam de refletir processos históricos nos quais as mulheres precisam do trabalho e da solidariedade umas das outras diante de ausências masculinas.


3) Penas sociais para as divergências.


A peça para a qual Teresa ensaia no início do filme é Doña Rosita, la soltera e tem autoria de Federico García Lorca, uma das vítimas da Guerra Civil Espanhola (o que ironicamente não altera a indiferença política de Teresa).


Apresenta o sofrimento de Rosita, personagem que passa a vida esperando o regresso do homem que prometeu se casar com ela. Humilhada pelos outros, vista como grotesca e ela mesma se vendo menos mulher por não cumprir o roteiro social feminino, Rosita é o retrato das violências historicamente praticadas contra aquelas que não se tornam esposas e mães.


Com isso, o filme faz um breve aceno às penas sociais que mulheres desde cedo são ensinadas a temer. Medo que tantas vezes torna os relacionamentos amorosos e a maternidade compulsórios.


4) A força da maternidade biológica.


As reações de Janis e Ana diante da revelação da troca de suas filhas no hospital mostra o quanto a maternidade biológica é o modelo materno hegemônico.


Tanto que Janis teme contar a verdade a Ana. Sabe que ela vai exigir a guarda da filha biológica e, por lei, ainda mais diante do erro cometido pelo hospital, seria favorecida nessa exigência.


Elas nem chegam a tentar uma dinâmica em que ambas pudessem ocupar a posição de mães da menina, considerando que, até aquele momento, Janis a tinha maternado e amado como filha.


Buscam acelerar o processo de transição de uma mãe a outra. Mais adiante, Janis volta a engravidar para, dessa vez, ser mãe inquestionavelmente.


5) Mães não se resumem nem se restringem à maternidade.


A atuação política das mães não se encerra em “criar um ser humano decente”. Ocupam outros papéis sociais além da função materna. Atuam em seus respectivos contextos. Votam ou anulam voto. Abraçam ou deixam de abraçar causas. Constroem ou destroem memórias, leis, mobilizações.


Ao contrário do que diz Teresa, ninguém é “apolítico”.


“Você precisa conhecer a história do seu país”, explica Janis a Ana.


Aquilo que mães fazem (ou deixam de fazer) constitui o impacto que causam em seu entorno. Esses posicionamentos são, inclusive, transmitidos aos filhos. Influenciam a maneira como eles vão se posicionar diante das mazelas e injustiças que os cercam.


Em tempos nos quais a abordagem personalista ganha tanta força, o filme nos convida a encarar as camadas (socioculturais, históricas, políticas, econômicas) que perpassam a vivência materna.


Que a maternidade e a maternagem possam ser construtivas, transformadoras.

E não alienantes.


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Gostou desse artigo? Acompanhe o Primeira Linha para publicações semelhantes.


Confira aqui o post sobre as reflexões em torno do filme Mães Paralelas em formato compacto.


As temáticas mobilizadas nessa breve resenha são melhor exploradas no livro Ser mãe é f*d@!”: mulheres, (não) maternidade e mídias sociais. Mais conteúdo sobre o livro nesta aba.

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